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O Polo Jurídico que não seguia as leis

Imagem do projeto "Não saio daqui porque"

Imagem do projeto “Não saio daqui porque”

Dentre os temas eleitos em uma enquete do final de 2012 no grupo Direitos Urbanos como uma das principais ameaças sobre a cidade está o Polo Jurídico na Ilha de Joana Bezerra, junto à comunidade do Coque. O que chama a atenção do projeto como uma grande ameaça aos direitos urbanos é o quanto esse projeto avança sobre a comunidade do Coque e amplifica para um novo patamar a pressão especulativa que as ZEIS no caminho do interesse imobiliário têm sofrido. Segundo carta aberta do Ponto de Cultura Espaço Livre do Coque, divulgada aqui no blog, o projeto destrói áreas de lazer e outros espaços públicos da comunidade, ocupa áreas que deviam ser destinadas a obras de interesse da comunidade aprovadas no Orçamento Participativo e continua um ataque gradual à comunidade que vem desde, pelo menos, 1978, com a construção do Viaduto Capitão Temudo. Tudo isso conflita diretamente com a legislação de proteção da área, considerada de interesse social, legislação esta que, diga-se de passagem, foi pioneira no Brasil e serviu de modelo para a inclusão do instituto das ZEIS no Estatuto das Cidades. Segundo o artigo 4º da lei 16.113/95 que disciplina as ZEIS, os objetivos dessas áreas incluem, :

  • IV – a preservação do meio ambiente natural e construído;

  • V – a implementação de infra-estrutura básica, serviços, equipamentos comunitários e habitação de acordo com as necessidades sócio-econômico-culturais dos moradores das ZEIS;

  • VI – inibir a especulação imobiliária em relação às áreas urbanas situadas nas ZEIS, evitando o processo de expulsão dos moradores;

  • VII – incentivar a participação comunitária no processo de urbanização e regularização fundiária das ZEIS;

  • VIII – respeitar a tipicidade e características das áreas quando das intervenções tendentes à urbanização e regularização fundiária.

É bastante duvidoso que esses princípios tenham sido observados em um projeto que ocupa áreas às margens do rio Capibaribe, investe em grandes obras que não são voltadas para o benefício da comunidade, aumenta a pressão especulativa sobre a área ocupada por habitação e representa um evidente corte na tipicidade da ocupação, passando de uma área ocupada por casas para prédios com grande área construída.

Imagem do projeto "Não saio daqui porque" versão Coque.

Imagem do projeto “Não saio daqui porque” versão Coque.

Para piorar o que, na sua concepção, já estava ruim, a aprovação desse projeto foi feita de maneira completamente irregular.

Irregularidades da lei de 2010 

Em resposta a um pedido de informação, a presidente do Instituto Pelópidas da Silveira, responsável pelo plano original da operação urbana, confirmou uma suspeita que as primeiras discussões sobre o projeto já traziam: “Com relação às informações solicitadas, informamos que não foram realizadas audiências públicas nem Estudos de Impacto de Vizinhança da referida Operação Urbana”. A falta de EIV afronta diretamente o Estatuto das Cidades (EC; lei 10257/01): “Art. 33. Da lei específica que aprovar a operação urbana consorciada constará o plano de operação urbana consorciada, contendo, no mínimo: (…) V – estudo prévio de impacto de vizinhança;” e Plano Diretor da Cidade do Recife (PDCR; lei 17511/08): “Art. 170 Lei municipal específica delimitará as áreas para aplicação de operações urbanas consorciadas, devendo constar do plano da operação: (…) V – estudo prévio de impacto de vizinhança;”.  Além da ilegalidade, a falta de um Estudo de Impacto de Vizinhança torna impossível uma adequada avaliação dos impactos do projeto sobre a comunidade e, portanto, a ponderação correta de custo x benefício que embasa a exigência das contrapartidas, parte obrigatória de uma operação urbana. E, no caso específico do Joana Bezerra, a falta dessa avaliação sistemática, independente e transparente dos efeitos do projeto sobre a região pode, dentre outras coisas, resultar no colapso final da mobilidade nessa região de passagem entre o Centro e a Zona Sul, já drasticamente piorado pelo Shopping RioMar, também feito sem EIV.

 

Plano de massas da Operação Urbana Polo Jurídico

Plano de massas da Operação Urbana Polo Jurídico

Além disso, a falta de qualquer audiência pública, atestada na resposta ao pedido de informação, choca-se com a diretriz da gestão democrática da cidade, expressa no inciso II do art 2º do EC, mas que tem raízes na Constituição Federal, além de desrespeitar o inciso XIII do mesmo artigo que coloca como diretriz da política urbana “audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população”. O judiciário Brasil afora tem dado ganho de causa a ações civis públicas ou ações populares que contestam modificações na legislação urbanística realizadas sem a devida participação popular. O caso mais notório é o da Operação Urbana da Nova Luz em São Paulo, que, de tanto sofrer na Justiça, acabou sendo cancelada pela Prefeitura de São Paulo. Essa situação se agrava com a falta de publicidade e transparência sobre o projeto, que no site da Prefeitura é apresentado somente na forma de alguns slides contendo um plano de massas sem muitos detalhes e alguns índices gerais.

 

Pode ficar pior ainda

 

No final de 2012, o momento em que João da Costa resolveu que não podia deixar o cargo sem legar à cidade um rastro de destruição, ele resolveu juntar à “aprovação” do Novo Recife e ao decreto sobre a Ilha do Zeca uma modificação da lei que definia a OUC Joana Bezerra, o Projeto de Lei do Executivo 22/2012. Dentre as diversas aberrações do PL, a mais gritante e discutida na imprensa foi a retirada das contrapartidas à comunidade definidas na lei original, que incluiam um parque público na beira do Capibaribe, um Centro Municipal de Educação Infantil, acesso ao TI Joana Bezerra, um Centro Ambiental, dentre outras coisas. A desculpa esfarrapada dada pelo Judiciário e acatada pela prefeitura foi que as contrapartidas não seriam devidas pois a atividade do Judiciário não é uma atividade com fins lucrativos. Mas isso é completamente irrelevante! Projetos residenciais em regime de condomínio também não tem destinação para uma atividade que gera lucros, mas a exploração comercial está na construção. As empreiteiras lucram com o Polo Jurídico tanto quanto lucrariam com um grande empreendimento residencial. Além disso, faz parte da definição mesma de uma operação urbana a idéia das contrapartidas.

O Polo Jurídico avança sobre a ZEIS do Coque e agora o Judiciário quer retirar as contrapartidas para a comunidade

O Polo Jurídico avança sobre a ZEIS do Coque e agora o Judiciário quer retirar as contrapartidas para a comunidade

A operação urbana não é só um mecanismo para driblar restrições das leis urbanísticas, mas deve ter como objetivo também “melhorias sociais e a valorização ambiental” (art. 32, §1º, EC), tanto que a determinação das contrapartidas a serem exigidas daqueles que se beneficiam dos índices construtivos mais generosos é, segundo o Estatuto das Cidades, item obrigatório da lei que define a operação urbana (EC, 33, VI). E, já ultrapassando a linha da falta de respeito com a inteligência de todo cidadão recifense, o projeto não só retirava as contrapartidas obrigatórias como elevava os índices construtivos no local de 4,5 para 7, um índice bem maior, por exemplo, do que o utilizado no Novo Recife. Assim, se o projeto de lei não tivesse sido retirado de pauta pela nova gestão, essa modificação agravaria ainda mais as ilegalidades do projeto original. [adição (04/05): Na verdade, parte desse ataque às contrapartidas já se tornou realidade através da lei 17714, de 2011, que retirou a exigência da contrapartida do parque à beira do rio Capibaribe para conceder licença às obras do Setor Jurídico. Essa lei, por razões mais fortes que as do caso da lei original de 2010, é completamente ilegal e inconstitucional e a licença concedida, nula]

 

Mas há um problema maior que o novo projeto tentava esconder e que é levantado pela resposta do ICPS ao pedido de informação – “Ressaltamos que, considerando o não início da mesma no prazo de 2 anos a contar da publicação da Lei que a instituiu em 2010, o então Executivo Municipal solicitou, no final de 2012, a sua republicação COM alterações substanciais de seu teor.”. O projeto original, de 2010, estabelecia um prazo para a validade dos benefícios da Operação Urbana: 180 dias para a apresentação dos projetos e 18 meses para o início da obras. No entanto, dos vários prédios previstos inicialmente, somente o da Escola Superior da Magistratura foi iniciado, e, com isso, do jeito que as coisas estão no momento, o resto do projeto do Polo Jurídico estaria morto. Por isso, o novo PL revogava esses limites temporais e mais diversos outros possíveis controles administrativos da implementação do Pólo, como o escrutínio pela Procuradoria Jurídica do Município e a análise dos projetos pelo Instituto Pelópidas, responsável pelo planejamento urbano.

 

O bicho, porém, não está completamente morto. Sem a revogação ou anulação da lei de 2010, ainda é possível uma jogada como a que João da Costa tentou no final de 2012. A parte final da mensagem em resposta ao Pedido de Informação deixa essa possibilidade no ar: “Ressaltamos que, considerando o não início da mesma no prazo de 2 anos a contar da publicação da Lei que a instituiu em 2010, o então Executivo Municipal solicitou, no final de 2012, a sua republicação COM alterações substanciais de seu teor. O novo texto, porém, não foi apreciado pela Câmara Municipal antes do final da Legislatura anterior. Portanto, de modo a dar continuidade no assunto em consonância com a complexidade e a atenção que o tema requer, o Executivo Municipal está analisando algumas questões de forma e conteúdo do último texto proposto, devendo se posicionar sobre o assunto em momento oportuno.” Ao mesmo tempo, tem aparecido na imprensa notícias de uma PPP para a construção dos prédios do Polo Jurídico. Por isso o assunto ainda deve ser tratado como uma ameaça presente, sobretudo pela forma ilegal e pouco transparente e participativa como o projeto vem sendo conduzido.

Nem entrei aqui na discussão sobre se a idéia de um Pólo Jurídico, a concentração em um único lugar de todos os serviços ligados à prestação da Justiça, é uma boa idéia ou não para a cidade como um todo. Até que me provem o contrário, o pouco que conheço da literatura urbanística me permite concluir que não é uma boa idéia criar tamanha setorização na cidade, com tanta concentração de um só uso, enquanto que a receita clássica para criar lugares com vitalidade urbana é a mistura de usos. A mistura de usos promovida nesse projeto, do uso institucional no Setor Jurídico com o uso residencial na ZEIS é uma mistura de água e óleo, não une os mesmos usuários, e o resultado é que o movimento que o Setor Jurídico criará durante a semana desaparecerá no final de semana da mesma forma que acontece atualmente no Centro da Cidade. A idéia de um pólo qualquer coisa, enquanto pode ser benéfica do ponto de vista privado dos usuários daquele setor, para a cidade apenas reproduz um dos grandes erros de Brasília, perdendo a chance de usar geradores de vitalidade tão fortes quanto os prédios do Judiciário para promover a revitalização de outras áreas da cidade. E, para completar o estrago urbanístico, o projeto ainda tira do já esvaziado bairro de Santo Antônio aquelas atividades que conseguem movimentar o seu comércio durante a semana, criando um problema urbano adicional e indo na contramão das idéias de revitalização do Centro do Recife. Mas, mesmo sem entrar em toda essa discussão, mesmo assumindo, para efeito de argumentação, que o projeto é benéfico para a cidade, ele não poderia ir adiante com todas as graves irregularidades que ferem justamente valores garantidos na Constituição, como a participação popular e a função social da cidade. Isso não é desenvolvimento. Fecho, assim, com a seguinte passagem, citada na sentença que concedeu liminar suspendendo o Projeto Nova Luz em SP justamente com base na falta de participação popular:

Um desenvolvimento urbano autêntico, sem aspas, não se confunde com uma simples expansão do tecido urbano e a crescente complexidade deste, na esteira do crescimento econômico e da modernização tecnológica. Ele não é, meramente, um aumento da área urbanizada, e nem mesmo, simplesmente, uma sofisticação ou modernização do espaço urbano, mas, antes e acima de tudo, um desenvolvimento sócio-espacial na e da cidade: vale dizer, a conquista de melhor qualidade de vida para um número crescente de pessoas e de cada vez mais justiça social. Se uma cidade produz mais e mais riqueza, mas as disparidades econômicas no seio de sua população aumentam; se a riqueza assim produzida e o crescimento da cidade se fazem às custas da destruição de ecossistemas inteiros e do patrimônio histórico-arquitetônico; se a conta de modernização vem sob a forma de níveis cada vez menos toleráveis de poluição, de estresse, de congestionamentos; se um número crescente de pessoas possui televisão em casa, para assistir a programas e filmes de qualidade duvidosa e que, muitas vezes, servem de inspiração para atos de violência urbana, violência urbana essa que prospera de modo alarmante; se é assim, falar de desenvolvimento é ferir o bom senso. Pode-se, em um tal caso, falar de crescimento urbano, complexificação da cidade e até mesmo modernização do espaço urbano e dos padrões de consumo; mas seria um equívoco tomar isso por um processo de desenvolvimento urbano autêntico, valer dizer, por um processo de desenvolvimento sócio-espacial na e da cidade coerente e isento de grandes contradições”.  Marcelo Lopes de Souza, in ABC do Desenvolvimento Urbano, Editora Bertrand Brasil, pp. 101/102

Discussão

3 comentários sobre “O Polo Jurídico que não seguia as leis

  1. agradeço o empenho de cada um de voces.. Direitos Urbanos | Recife .Leonardo Cisneiros .Bruna Monteiro e Renata Pires é cada um dos 9.481 membros muito obrigado por nos ajudar nessa luta

    Publicado por moises | 4 04-03:00 maio 04-03:00 2013, 03:26
  2. Excelente texto! Havia bastante tempo que nao viamos uma analise lucida sobre a forma desrespeitosa e cinica com que a questao das Zeis viha sendo tratada em nossa cidade, submergindo decadas de luta em prol de interesses privatistas do uso publico do territorio de nossa cidade. Parabéns!!!!

    Publicado por Alexandre Freitas | 29 29-03:00 julho 29-03:00 2013, 10:42

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