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Legislando em nome do interesse privado – Geraldo Julio, a Boa Vista e o caso do PLE 43/2014

Como quem acompanha o grupo já sabe, o Prefeito Geraldo Julio enviou no dia 18 de novembro um pacotaço de trinta projetos de lei para a Câmara, vários em regime de urgência, para serem votados ainda neste ano. Isso obviamente impede uma discussão detalhada dos projetos pelos vereadores e mais ainda a participação dos cidadãos no processo. Dentre estes vários projetos, um trata de um assunto que foi objeto de uma mobilização do grupo e que foi uma de nossas vitórias: a regulamentação da área histórica da Boa Vista, ameaçada pela expansão imobiliária. No texto que se segue, eu conto a história dessa briga e tento mostrar como as atitudes do Prefeito em relação à área e esse projeto de lei, em particular, são bastante suspeitos de favorecer interesses diretos de uma construtora e do capital imobiliário, acobertando a aprovação irregular e possivelmente criminosa de diversas licenças e deixando em risco a preservação do nosso patrimônio histórico-cultural.

Mapa da área do Plano Urbanístico da ZEPH-8 com destaques dos setores e dos Imóveis Especiais de Preservação

Mapa da área do Plano Urbanístico da ZEPH-8 com destaques dos setores e dos Imóveis Especiais de Preservação

O Plano Diretor da Cidade do Recife (lei 17511/08) e a Lei de Uso e Ocupação do Solo (lei 16176/96) estabelecem, dentre as formas de zoneamento aplicáveis à cidade, Zonas de Proteção de Patrimônio Histórico e Cultural (ZEPH), definidas como “áreas formadas por sítios, ruínas, conjuntos ou edifícios isolados de expressão artística, cultural, histórica, arqueológica ou paisagística, considerados representativos da memória arquitetônica, paisagística e urbanística da cidade” (art. 114 Plano Diretor). Os arts. 115 e 117 remetem a regulamentação do uso e ocupação do solo nas ZEPHs a disciplinamento por lei específica, na forma de planos urbanísticos com detalhamento das regras de ocupação e parâmetros construtivos para a área.

A região histórica da Boa Vista é uma dessas zonas, a ZEPH-8, e, segundo o anexo 11 da LUOS de 1996, isto é, antes de o Plano Diretor estender tal exigência para todas as ZEPHs, já estava determinado que as condições de ocupação tanto no Setor de Preservação Ambiental dessa ZEPH, uma área de transição no entorno do conjunto cuja preservação é mais rigorosa, deveriam ser detalhadas em “plano específico”, isto é, em um plano urbanístico que, como tal, deve ser aprovado em lei. O prefeito João da Costa tinha enviado à Câmara dos Vereadores, em 18/11/2010, um Projeto de Lei do Executivo (PLE 22/2010) instituindo o Plano Urbanístico da ZEPH-8. O projeto era surpreendentemente decente para um prefeito que se notabilizou por favorecer as empreiteiras: um estudo minucioso da área resultou em um plano com um nível de detalhe tal que chegava a estabelecer parâmetros urbanísticos para cada FACE DE QUADRA da área. O plano também criava dezenas de novos imóveis especiais de preservação (IEPs) e tinha parâmetros bastante restritivos nas áreas com a maior parte do conjunto preservado.

Esse projeto ficou em hibernação na Câmara por dois anos e foi colocado na pauta de votações do dia 20/11/2012, porém, por razões desconhecidas, mas suspeitas, acabou não sendo votado. A hibernação continuou até 07/05/2013, quando o prefeito Geraldo Julio solicitou a retirada do projeto da Câmara. Tal fato causou apreensão no Direitos Urbanos, visto que a Prefeitura já havia licenciado na época de João da Costa um prédio de 30 andares bem próximo ao Mercado da Boa Vista, em uma área que devia garantir uma ambiência para o conjunto histórico. Com a retirada do Plano da Câmara, o medo foi que a porta ficasse aberta para outros empreendimentos desse tipo e que o entorno do conjunto histórico da Boa Vista ficasse definitivamente estragado. Além disso, quando um projeto de lei como esse está em tramitação, uma série de garantias legais se aplicam aos imóveis da área. Mais especificamente, o projeto listava um conjunto de setenta novos imóveis passíveis de classificação como Imóvel Especial de Preservação, e o Plano Diretor, em seu artigo 123, parágrafo único, estabelece que “a partir do ingresso de Projeto de Lei na Câmara Municipal do Recife para instituição de um IEP, serão suspensas quaisquer análises, aprovação ou licenciamento, a qualquer título, para o imóvel em questão, até o encerramento do respectivo processo legislativo”. Dessa maneira, a retirada do Projeto de Lei da Câmara e seu respectivo arquivamento, eliminou de súbito a proteção provisória que incidia sobre todos estes setenta imóveis de interesse histórico-cultural. Se o Prefeito quisesse somente dar uma nova redação ao projeto de lei não precisaria disso. Bastaria solicitar à Câmara a suspensão da tramitação até a apresentação de um substitutivo e, assim, evitaria eliminar a proteção provisória dos imóveis de interesse histórico. Do jeito que agiu, ficou no ar a suspeita de que queria mais facilitar a aprovação de projetos na área histórica e em imóveis passíveis de preservação do que reformular o plano.

Diante do risco trazido pela ação do Prefeito, integrantes do grupo Direitos Urbanos ingressaram com uma representação na 35ª Promotoria de Urbanismo, pedindo providências para que fosse regulamentado o plano urbanístico previsto no Plano Diretor e na LUOS e que se recomendasse a suspensão de quaisquer aprovações de projetos para a área até a aprovação desse plano. A representação foi aceita e o MPPE expediu a Recomendação 01/2013, que foi acatada pela Prefeitura que respondeu que iria de fato congelar todos os processos na área até a existência de um plano aprovado. Em 18/11/13 a Prefeitura encaminhou o projeto de lei correspondente ao plano urbanístico, o PLE 57/2013, e, em 21/05/2014, apresentou um substitutivo incorporando emendas parlamentares, que foi aprovado em 01/07/14 e publicado em Diário Oficial em 26/07/14 como a lei nº 18046. O interessante, e mais suspeito, é que o projeto reapresentado em novembro de 2013 era, para todos efeitos práticos, idêntico ao de João da Costa, com os mesmos parâmetros construtivos e a mesma lista de IEPs. A suspeita ficou mais forte: para que retirar um projeto de lei da Câmara e não fazer modificação significativa nenhuma, a não ser para eliminar a proteção temporária de alguns imóveis?

Em 19/08/2014, fizemos pedido de informação a respeito de projetos aprovados na área da ZEPH-8 e a resposta  listou 32 processos dos mais variados tipos, como parcelamentos de terreno, alvarás de demolição, aprovação de projeto inicial etc. Analisamos a planilha partindo da regra do Plano Diretor, de que, enquanto tramitar na Câmara um projeto de lei que transforma um imóvel em IEP, todos os processos sobre ele ficam suspensos, e aí alguns processos chamaram particularmente a atenção:

  • O processo 07.65017.0.13 altera o parcelamento de um lote classificado como IEP tanto pelo Projeto de Lei de 2010, quanto pelo reapresentado pela nova gestão municipal, o Colégio Nossa Senhora do Carmo, nº370 da rua Visconde de Goiana, com um terreno que vai até a Barão de São Borja. É um processo de desmembramento, ou seja, tem o objetivo de dividir em dois o terreno do Colégio, no caso para juntar com o terreno de outro imóvel. Esse processo foi protocolado em 27/11/2013, DEPOIS, portanto, do ingresso na Câmara do projeto de lei da gestão atual, e foi deferido em 02/05/2013, antes da aprovação do projeto na Câmara. (DOC 4) Ou seja, o processo administrativo tramitou em paralelo com o processo legislativo de transformação do imóvel em IEP, infringindo a vedação do art. 123, par.único, do Plano Diretor. O processo de parcelamento foi do começo ao fim justo no período em que todos os processos sobre o imóvel deveriam estar suspensos! Pra piorar, a lei 16284/97, que regulamenta os IEPS, veda, em seu art.11, o desmembramento de terrenos de imóveis classificados assim e, enquanto tramitava um projeto para transformar o Colégio em IEP, ele deveria ser tratado como tal.

    Casarão da Visconde de Goiana, 296, transformado em IEP pela lei 18016 e ameaçado pelo PL de Geraldo Julio

    Casarão da Visconde de Goiana, 296, transformado em IEP pela lei 18016 e ameaçado pelo PL de Geraldo Julio

  • Os processos 07.21265.8.13 e 07.10787.6.14 são ambos referentes a um mesmo imóvel, o de nº 296 da rua Visconde de Goiana, tratando respectivamente de aprovação de projeto inicial e demolição. Este imóvel, que já chamava a atenção do pessoal no grupo do Direitos Urbanos, passou a ser listado no substitutivo apresentado em 21/05/2013 como Imóvel Especial de Preservação. O primeiro processo, o de aprovação de projeto inicial, iniciou-se em 18/07/2013 e foi concluído em 02/12/2013, numa data em que, se a Prefeitura realmente tivesse cumprindo a Recomendação do MPPE, todos os processos estariam congelados. Já o segundo processo, o de licença de demolição, teve início em 27/02/2014 e foi concluído em 05/06/2014, portanto APÓS a entrada em tramitação do substitutivo que classificava o imóvel como IEP, em mais uma violação do art.123, par.único, do Plano Diretor, e da própria lei dos IEPs, a 16284/97.

E aí chegamos ao pacotão de projetos de lei de Geraldo Julio. Dentre os vários projetos apresentados, a Prefeitura encaminhou o de nº 43/2014 que visa uma modificação na lei do Plano Urbanístico da Boa Vista, para incluir a seguinte regra: “Art. 9º Os projetos aprovados e com alvará de demolição já expedido serão regularmente concluídos e licenciados segundo as leis e a classificação dos imóveis vigentes à época de sua aprovação”. Ou seja, o projeto de lei quer tentar remendar a lei aprovada para conceder de graça aos proprietários e empreendedores um “direito de protocolo”, que o STF já mostrou repetidas vezes que não existe (só um exemplo, mais outro e outro). A lei do plano não tinha nenhuma ressalva dessa e isso deveria implicar que todas as licenças concedidas em desacordo com as regras do plano não valessem mais, sobretudo porque seriam licenças incompatíveis com a preservação do patrimônio histórico. O Prefeito quer criar um direito onde a lei anterior já invalidou as licenças e está fazendo isso, como de costume, sem participação popular, com um projeto que não foi objeto de audiências públicas e não passou pelo Conselho da Cidade. E em uma área histórica! Retrocedendo na proteção que a lei já em vigor garante! Tudo isso já bastaria para mostrar a inconstitucionalidade formal e material do projeto de lei.

Já tá rolando por aí propaganda do empreendimento com aprovação irregular na Visconde de Goiana

Já tá rolando por aí propaganda do empreendimento com aprovação irregular na Visconde de Goiana

Mas, o mais grave é que, como vimos acima, algumas dessas licenças não poderiam sequer ter sido expedidas em primeiro lugar, são ilegais, resultam de processos que deviam estar congelados segundo o Plano Diretor! Alguém na DIRCON infringiu a lei, concedeu licença em processos congelados, e o Prefeito, ao invés de anular as licenças e investigar seus subordinados que infringiram a lei, quer PROMULGAR UMA LEI para legalizar o ilícito! (atualização: o mais grave é que essas autorizações, em conflito com uma regra de preservação do patrimônio histórico, podem ter constituído crime ambiental à luz da lei 9605/98) E para piorar, se lermos com atenção o texto do projeto de lei reproduzido acima, ele fala só dos casos em que haja ao mesmo tempo aprovação de projeto arquitetônico E licença de demolição. Mas, por aquela tabela, SÓ HÁ UM CASO ASSIM: o do nº 296 da Visconde de Goiana! Ou seja, o Prefeito Geraldo Julio quer promulgar uma lei, atropelando as exigências de participação popular do Estatuto da Cidade e da Constituição Estadual, para favorecer UM ÚNICO EMPREENDIMENTO IMOBILIÁRIO PRIVADO e que implicará a destruição de um imóvel reconhecido como de interesse histórico-cultural! Trata-se de um caso gritante de violação do princípio da impessoalidade, segundo o qual a administração deve tratar os administrados sem favorecimentos. Um atentado à moralidade administrativa e já seria caso de improbidade só pela falta de participação popular (Estatuto da Cidade, art.52, VI), quanto mais por isso!

O caso já está no Ministério Público, na Promotoria de Urbanismo (a que tinha começado o caso na época da recomendação de congelar os processos) desde o dia 25 de novembro, mas até agora não tivemos resposta. Devemos representar também contra o Prefeito por improbidade administrativa. E esperamos (um pouco em vão) que a Câmara faça seu papel de contrapeso ao Poder Executivo e rejeite essa imoralidade.

Discussão

5 comentários sobre “Legislando em nome do interesse privado – Geraldo Julio, a Boa Vista e o caso do PLE 43/2014

  1. “A especulação imobiliária é a parteira da corrupção nos órgãos públicos”
    (Kandir, 1983)

    Publicado por Paulo | 6 06-03:00 dezembro 06-03:00 2014, 09:07
  2. Que loucura, esses processos de demolição nunca poderiam ser deferidos. Estes processos deveriam ter sido congelados mediante ingresso de PL que propõe a transformação dos respectivos imóveis em IEP, por força da lei do Plano Diretor. Se estes processos foram mesmo deferidos enquanto os respectivos imóveis estavam em análise para transformação em IEP e se, de fato, os imóveis foram transformados em IEP, trata-se de erro flagrante da Prefeitura, em descumprimento ao Plano Diretor no seu art. 123. Simples assim.

    Mesmo que esse PL 43/2014 seja aprovado, não poderá acobertar o caso da rua Visconde de Goiana, pois não terá efeito retroativo. E mesmo se tivesse efeito retroativo, teria efeito inócuo sobre este caso, pois o erro (escandaloso) da Prefeitura (ignorar um artigo do PD!) pode ser facilmente provado e ocorreu antes da data de deferimento dos processos, ou seja, antes que valesse a aplicação do disposto no PL 43/2014, caso viesse a se transformar em lei.

    Na verdade esse PL 43/2014 é meio louco e estranhamente vai de encontro ao que seria “melhor” pro empreendedor pois manda que um processo interligado a um projeto inicial/reforma (o licenciamento) seja analisado pela legislação vigente à época da ~aprovação~ do projeto inicial, enquanto o PD manda que os processos interligados a projetos iniciais/reformas sejam analisados pela legislação vigente à época do ~protocolamento~ do processo do projeto inicial/reforma, ou seja, fato que acontece bem antes de sua aprovação (PD, art. 226). Imagina se uma lei mais restritiva entra em vigor um dia antes da data de deferimento? kkkkkk Como é que fica? E se surgir uma lei mais permissiva durante o trâmite do projeto, como proceder?! Aí, naturalmente o empreendedor vai querer usufruir das novas permissividades e para isso, só poderá fazê-lo se entrar com outro número de protocolo, cancelando o primeiro, que confusão. Esse PL tá muito estranho. #PrefeituraSeLiga.

    Mas pro caso do IEP, toda essa coisa da data é inútil. A qualquer tempo que entrar um PL propondo criação de IEP e IPAV, suspende-se tudoooooo relativo aos imóveis em questão, seja projeto inical/reforma, alvará de demolição, e inclusive licenciamento e etc. A qualquer tempo!

    E sempre que se falar em “leis vigentes à época”, bom, isso vai incluir o art. 123 do PD enquanto este for vigente. E se algum projeto inicial ou processo de licenciamento (de demolição, de construção) foi deferido sem atender algum aspecto das tais leis vigentes (inclusive o art. 123 do PD), vai continuar sendo erro da prefeitura, mesmo se o PL 43/2014 for aprovado com todos os seus termos.

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    O que o PD faz com o excelente instrumento do congelamento do art. 123 é criar uma exceção especial. É dizer que algo que acontece anteriormente à letra da lei (como a proposição de um PL) tem valor e importa em consideração à necessidade de preservação do patrimônio histórico (e ambiental também, pois o instrumento também se aplica ao caso de IPAV – PD art. 130). Ou seja, o art. 123 é um detalhamento, uma restrição especial com claros propósitos de preservação patrimonial. O teor do art. 123 está salvaguardado no PD e o PL 43 não atua sobre ele nem se opõe a ele e nem seria retroativo se fosse aprovado. Não vai salvar a prefeitura dos erros cometidos mencionados aqui.

    Com isso tudo, quero dizer que acho que o foco é na denúncia de improbidade administrativa pelos ERROS no deferimento das demolições mencionadas. Esse PL, sinceramente, foi feito por alguém medíocre dentro da Prefeitura. Se queria fazer um arrumadinho pra salvar algum erro, precisarão ter outra ideia.

    Publicado por Clara Moreira | 8 08-03:00 dezembro 08-03:00 2014, 17:58
    • PERFEITO, CLARA CLARÍSSIMA! 😀 A gente já denunciou ao MP para que atue para invalidar essas aprovações, mas tem que rolar improbidade contra o Prefeito e contra os funcionários que analisaram os processos quando deveriam estar congelados! Inclusive é crime ambiental pela lei 9605, né?

      Publicado por Leonardo Cisneiros | 9 09-03:00 dezembro 09-03:00 2014, 11:31
  3. O alvará de demolição foi suspenso pelo Juiz da 1ª Vara da Fazenda Pública do Recife!
    Ação Popular: 0003029-85.2015.8.17.0001

    O final da decisão:

    Em razão disso, neste momento de cognição sumária, DEFIRO PARCIALMENTE o pedido liminar para, em consequência, determinar a suspensão, incontinente, dos Projetos, alvarás e licenças de demolição do imóvel n.º 296 da Rua Visconde de Goiana, no Bairro da Boa Vista, no Recife, bem como dos processos administrativos n.º 07.10787.6.14 e 07.21265.8.13, nos termos do §4º do art. 5º da Lei n.º 4.717/65, até julgamento final da presente ação.
    Fixo, a título de multa diária, pelo descumprimento da decisão o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais)”

    Publicado por Anderson Joélio | 30 30-03:00 janeiro 30-03:00 2015, 19:08

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